quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Um presente do passado [CONTINUAÇÃO]

"Querido filho, caso você esteja lendo isso, é porque já não estamos mais juntos. Você deve estar lendo isso no seu aniversário de dezenove anos. Meus parabéns, filho! Você acaba de entrar em uma fase nova da sua vida. Novas responsabilidades, novos conceitos, novos horizontes...
Antes de tudo, peço desculpas. Perdão por não estar ai, do seu lado. Você sabe que eu não resisti à luta contra o câncer, acabei partindo cedo. Peço desculpas por não estar ai com você, te apoiando nas horas difíceis, nos momentos em que você mais precisou da minha presença. Esta tristeza eu carreguei até o meu último suspiro: Não poder estar com meu filho.
Sabe, quando eu e sua mãe nos casamos, desejávamos um filho. Queríamos muito ter uma criança em nossas vidas. E antes mesmo de você já existir já era amado por nós. Nós sonhávamos com um garoto, e veio você, este presente. Você era como nós imaginávamos! Quando lhe peguei nos braços, você era tão pequeno... Você me olhou nos olhos, e deu um sorriso pra mim. Chorei naquele momento quando nossos olhares se cruzaram.
Você chegou, e eu parti. Eu imaginava como seria nossos dias, como seria estes programas de "pai e filho". Mas acabou que você cresceu sem minha presença, sem meu apoio. Mas eu sei que sua mãe foi como um pai também; ela foi o seu maior apoio em toda a sua vida. E eu sei que neste momento, quando você lê isto, sei que já é um homem de cabeça boa e caráter feito.
Ah! Como eu queria estar ai do seu lado. Como eu queria que ano após ano eu pudesse lhe dar os parabéns pelos seus aniversários. Mas como não pude, deixo para você este livro branco, onde você pode escrever toda esta nova vida que se inicia agora. Que tudo de mais importante para você possa ser registrado neste livro. Para que você, em um futuro, possa ler as suas memórias, e ver que a sua vida valeu a pena, cada momento dela...

Para meu querido filho, deixo grandes votos, para que todos seus sonhos sejam realizados.
Com amor, Papai"



Este texto estava na contracapa do seu presente do menino, o livro que seu falecido pai havia dado pra ele, mas foi entregue na sua festa de aniversário pelo seu avô. O garoto terminou de ler, e o relógio marcava seis horas da manhã. Era tarde, sua festa ficou para as horas que se passaram. Ele resolveu ficar por alí mesmo, repousar no sofá do escritório. Se aconchegou alí mesmo, e reclinou a sua cabeça para descansar. Foi abraçado com seu presente, apertou-o bem forte no peito, e caiu no sono. E na sua alma, uma sensação de felicidade...


Primeira parte aqui.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

O Camponês de Florença

Irei contar a seguir um breve e notável fato da vida camponesa ocorrido em uma aldeia de Florença há mais de quatrocentos anos atrás. Peço a atenção do leitor para este importante acontecimento histórico, pois a lição de moral não terá de esperar o final do relato.

Estavam os habitantes daquela aldeia em suas casas ou a trabalhar nos campos de cultivo, cada qual com suas tarefas e afazeres, quando de súbito ouviram o soar do sino da Igreja. Naquela época (séc. XVI), os sinos tinham grande função social: Dobravam várias vezes ao dia, assinalava as horas, anunciava aos aldeões as comemorações cristãs, ou até mesmo convocava o povo para acudir às catástrofe. Porém, desta vez o sino tocava melancolicamente um tom fúnebre. Tal fato surpreendeu os moradores daquela aldeia, pois não tinham conhecimento de ninguém entre os seus que pudesse estar doente. Deixaram as mulheres suas casas, as crianças pararam de brincar, os homens largaram suas lavouras e todos se reuniram no átrio da Igreja, esperando a notícia de quem morrera. O sino tocou por mais alguns instantes, e finalmente calou-se. A porta da Igreja se abriu e de lá saiu um Camponês. Não sendo este o encarregado de tocar o sino, logo os seus vizinhos lhe indagaram onde se encontrava o sineiro e quem era o morto. "O sineiro não está aqui, fui eu quem toquei o sino", respondeu o Camponês. "Mas então, não morreu ninguém?", tornaram os vizinhos a perguntar, e o Camponês respondeu: "Ninguém que tivesse nome e figura de gente, toquei a finados pela Justiça, pois a Justiça está morta".

O que aconteceu? Ocorreu que o senhor ganancioso daquele lugar andava há tempos modificando os limites de suas terras, invadindo e se apossando das terras do pobre Camponês. A cada avanço do senhor, mais o Camponês se via reduzido em seu pedaço de terra. O prejudicado começou a protestar e reclamar, depois pediu compaixão ao senhor, e como não obtivera nenhum resultado, resolveu queixar-se às autoridades e se acolher nos braços da Justiça. Porém, tudo sem resultado, e as tomadas continuavam. O Camponês, desesperado, resolveu declarar Urbi et Orbi (Para a Cidade e para o Mundo) a Morte da Justiça. Talvez ele pensasse que sua atitude lograria comoção, e todos os Sinos do Universo, sem diferença de raça, credo ou costumes, todos eles, sem exceção, tocariam a Morte da Justiça, e não se calariam até que a mesma ressuscita-se para este mundo. Um clamor de tal forma, que ecoasse pelo mundo, sem qualquer barreira ou fronteira, com tal força para acordar o mundo adormecido. Não sei o que ocorreu depois, não sei se o braço popular foi ajudar o Camponês a recuperar suas terras, ou se os vizinhos, uma vez que a Justiça havia sido declarada defunta, voltaram resignados, de cabeça baixa e a alma abalada, às suas tristes vidas. É certo que a História não nos conta tudo...

Suponho que esta foi a única vez no mundo que um sino, uma campânula de bronze inerte, chorou a Morte da Justiça. Nunca mais se tornou a ouvir aquele dobre fúnebre em Florença, mas a Justiça continuou e continua a morrer todos os dias. Neste instante, longe ou na porta ao lado de nossas casas, alguém está matando-a. E toda vez que a Justiça morre, é como se ela nunca tivesse existido para aqueles que nela confiavam, para aqueles que esperavam o que da Justiça nos temos o direito de esperar: Justiça, apenas Justiça. Não aquela Justiça vestida em túnicas de teatro, que nos confunde com retóricas judicialistas, não aquela Justiça vendada que permitiu que se viciassem seus pesos, não a Justiça com uma espada que corta mais para um lado que para outro, mas uma Justiça pedestre, uma Justiça companheira e cotidiana dos homens, uma Justiça para quem o justo seria o sinônimo de ética. Uma Justiça que chegasse a ser tão indispensável para a felicidade do homem quanto o alimento é indispensável ao corpo. Uma Justiça exercida pelos tribunais, sem dúvida, mas também e sobretudo, uma Justiça que seria a emanação espontânea da própria sociedade. Enfim, uma Justiça que apenas manifestasse o respeito pelo direito a ser de cada ser humano.

Hoje, o gesto do Camponês de Florença seria visto como a obra de um louco. Outros e diferentes sinos defendem e afirmam a possibilidade da implantação no mundo da Justiça companheira, distributiva e comutativa. Se houvesse essa Justiça, nenhum ser humano mais morreria de fome ou de tantas doenças que são curáveis para uns e mortíferas para tantos outros. Se houvesse essa Justiça, a vida para mais da metade da humanidade não seria uma terrível condenação da mesma. Se houvesse essa Justiça, cada ser humano poderia reconhecé-la como intrinsecamente sua, uma Justiça protetora da Liberdade e do Direito, e não de suas negações.

Não tenho mais nada a dizer. Ou sim, apenas uma palavra para pedir um instante de silêncio. O Camponês de Florença acaba de subir mais uma vez à torre da Igreja, o sino vai tocar. Ouçamo-lo, por favor.

Adaptado do Discurso "Este Mundo de Injustiça Globalizada"
Lido por José Saramago na cerimônia de encerramento do Fórum Social Mundial, 18/03/2002